quarta-feira, 1 de abril de 2009

Performatividade, liminiaridade - Austin, Turner e Artaud


A enunciação do texto é elemento central para esta proposta. Muito mais que a contação destas histórias antigas, nossa proposta era de encontrar a partir e dentro delas, uma forma de estabelecer um tipo específico de relação com o público. Para nós, não importa apenas as palavras e o que elas comunicam. Buscamos alguns pontos nos quais possamos experimentar o que Austin chama de performatividade e que Artaud tão vanguardisticamente chamou de materialidade concreta das palavras. Importa não apenas o sentido da palavra, não só o que expressa, mas o potencial da palavra como objeto. Perceber e explorar as formas como o corpo traz a existência determinadas ações e evoca determinadas reações. Ir além do significado. Provocar, evocar. Atingir um outro âmbito na relação com o espectador.

A história e as sucessões dos fatos o espectador pode ler em sua casa. Mas a apreensão pela vivência da história habita um liminar, uma zona de experiência que captura e gera uma leitura que antes de emocional ou intelectual, é física. Segundo Turner, o espaço de liminaridade surge pela tensão que se estabelece entre a relação do ator com o espectador. Entregues cruamente a uma arena de olhares na proximidade dos corpos, os atores evocam sensorialmente na relação com o espaço, formas materiais de atingir sem mediações o espectador. O espectador, exposto aos olhares dos outros espectadores e também dos atores, se vê impedido de esgueirar-se, de se ocultar. Seu corpo rouba um espaço que também é desejado para o performer. Atrito. Não se espera que o espectador simplesmente desapareça. É exigida sua presença corporal. É determinada uma condição de certa forma opressora, já que não passível de outra escolha, de ele se relacionar com o acontecimento. As relações são intensas.

Neste trabalho, o local físico imprime ao encontro, ao confronto e ao texto uma carga não apenas semântica, mas de estado. Todos são postos num local que gera um estado. Os ecos, o calor, a limpeza imprimem irrefutavelmente um estado de existência. Esta sala também impõe um estado cru e cruel de explicitação de todos os recursos. Não é possível ocultar o suor do rosto, o furo da saia, o esmalte borrado das unhas. O trabalho dos atores não é ocultado nem ao menos pelas personagens que são esboçadas no encontro. As personagens, se se materializam no corpos dos atores, não se fixam, uma vez que Barba-Azul ou Fatma transitam de um performer ao outros em frações de segundos e são vistos, sem se manter, em apenas frações de segundos. Estas personagens, e outras, não chegam a habitar os atores, que em momentos falam pelas personagens indistintamente do gênero, da unidade ou pluralidade. O ator não assume fixamente nem o protagonista nem o antagonista das tramas. Estes coexistem num mesmo corpo sem habitá-lo. Não é a vivência do sofrimento da personagem que usamos para chegar no observador - é a materialidade física do som e do espaço.

Nada além do que os atores dispõem em si serve ao encontro. Apenas seus corpos, suas vozes, sua respiração, sua memória, o jogo de harmonia que estabeleceram previamente e o espaço que acolhe e envolve com suas estruturas (parede, teto, escada de ferro, interior e exterior). Todo jogo é revelado e está aos olhos e à pele do espectador. Mais do que criar cenários sonoros, a destruição de palavras ou a associação de sons não figurativos evocam emanações físicas nos moradores deste locusatuantes e observadores. As ações corpóreo-vocálica-sonora-cinéticas despertam relacionamentos que não permitem a nenhum destes moradores estar em outra posição além de corporificar na imolação (atuante) ou no assalto(observador). É uma operação num buraco, numa quebra do meramente racional, no comodamente alheio. O observador é posto em atrito e, ao mesmo tempo que observado, deflagra qualquer tentativa de omissão do outro (tanto do observador quanto do atuante).

Se o ato de contar uma história para uma criança implica em bem mais do que descrever ações, entrar na sala-porão-piscina-caixa-esconderijo implica bem mais do que assistir um espetáculo ou ouvir uma história, mas num encontro no qual a apreensão sobrepuja a razão e a emoção.